terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

O livro do fim do mundo

Fazia calor como sempre na rodovia Castello Branco, Raul voltava de uma viagem a trabalho que o levou a maior cidade brasileira São Paulo e de lá se dirigia ao Estado do Paraná. A pista era uma reta interminável e a velocidade limite de 120 quilômetros por hora parecia nunca ser suficiente.

Ele havia saído de São Paulo às 15 horas tendo percorrido às três horas e meia que separam o início do término da rodovia com o sol em seu rosto que àquela hora começava a esmaecer no horizonte.

A rodovia Castello Branco começa em São Paulo e dirige-se ao interior do Estado, terminando em algum lugar entre Santa Cruz do Rio Pardo e Baurú, em uma bifurcação.

Ali os caminhos se dividem para quem se dirige ao Paraná ou para quem busca o interior paulista.

Raul faria a curva para a esquerda, em mais três horas, calculava ele, chegaria a sua casa na pequena cidade de Cambé no interior do Paraná, onde sua mulher e seus dois filhos o aguardavam.

Raul tinha 41 anos, era representante comercial e era casado com Fabiana, sua melhor amiga do colegial e amor de toda a vida. Suas histórias passaram juntas pela adolescência chegando ao casamento e aos filhos Eduardo, o Dudu e Fábio.
Eduardo foi o nome escolhido pelo pai, nascido em 1995, hoje estava entrando no ensino médio e sonhava com o curso de engenharia mecatrônica. Fábio era o caçula, nascido em 1998, estava com a rotina de tantos outros garotos de sua idade, ambos eram conhecidos jogadores de futebol pelo talento que possuíam e, como era de se esperar, o orgulho de toda família.

Quando Raul se casou com Fabiana filhos não eram prioridade, tampouco um sonho. Eduardo foi obra do acaso e a fascinação foi tanta que Fabiana deixou a carreira de administradora e engravidou novamente três anos depois, hoje era uma mãe dedicada e uma esposa singular. Raul, sozinho no carro pensava em como sua vida tinha sido boa durante esses anos todos.

A hora era 18h35min.

Neste momento o rádio que tocava músicas românticas passou a dar notícias, algo como plantão ou coisas do tipo. Raul não se deu ao trabalho de ouvir. Mudou de estação. A presidente falava alguma coisa.

Depois de 3h30min de rodovia e com mais outro tanto desses pela frente, ele realmente não queria ouvir boletins de notícia. Mudou mais uma vez a estação do rádio e o mesmo falatório se repetia. Raul olhou a sua volta e percebeu carros estacionando à beira da rodovia, o motorista a sua frente fez um retorno brusco e, derrubando os cones de sinalização, fez a volta a sua frente e saiu cantando os pneus do carro.

Raul decidiu ouvir o que o rádio tinha a dizer e o rádio disse que em 60 minutos, contados de 18h35min (horário de Brasília) o mundo não existiria mais da maneira como conhecemos.

Faltavam 350 quilômetros para chegar a sua casa. Três horas e meia dirigindo.
Pegou o celular e tentou ligar para a esposa e filhos, não conseguiu, o congestionamento de ligações jamais permitiria completar uma chamada.

Dirigiu até o posto de serviços mais próximos, cada segundo era uma eternidade na estrada, percorreu os dez quilômetros que o separavam de um telefone público e estacionou de qualquer jeito próximo ao terminal, havia dezenas de pessoas em fila para fazer uma ligação, seria impossível esperar tanto.

Era impressionante que a notícia tivesse se espalhado tão rápido e mais impressionante ainda que as pessoas tivessem dado tanta credibilidade a essa notícia, portanto, ou se tratava de uma histeria coletiva ou tudo aquilo era realmente verdade, Raul não sabia o que poderia ser pior.

Procurou se acalmar e pensou em uma forma de saber se sua família estava vivendo esse pandemônio ou se isso era uma peça bem dada de algum espertalhão da internet, lembrou e sorriu do episódio onde jovens brasileiros espalharam uma campanha mundial para salvar um pássaro em extinção que prontamente foi atendida por milhões de pessoas, mas que não passava de uma piada com um conhecido apresentador da TV. Relaxou.

Lembrou de seu telefone móvel e pensou que a internet poderia ser um veículo de informação mais preciso naquele momento, há muito os telefones móveis conhecidos como celulares deixaram de ser apenas telefone e se tornaram verdadeiras centrais de comunicação mundial, poderia conectar-se inclusive em alguma rede social e mandar um recado online para sua esposa ou filhos. Olhou o aparelho e constatou que ali não havia sinal de sua operadora, por um segundo praguejou perguntando o porquê de não haver aceitado o plano coorporativo que sua empresa lhe havia oferecido com outra operadora, em outra hora certamente voltaria atrás. Andou alguns metros, mas nenhum sinal foi encontrado.

Voltou ao carro e dirigiu o mais rápido que pode até o primeiro lugar onde houvesse sinal em seu celular, no caminho viu mais desordem e pessoas desesperadas, mas manteve firme seu objetivo. Ao chegar ao topo de um elevado viu o sinal da antena de seu celular encher-se e ali parou. Saiu do carro e sentou-se no chão. Conectou-se a internet e abriu um portal de notícias.

Enquanto lia o sinal do celular ficou instável e a internet deixou de ser uma possibilidade.

Mas estava lá. Não era mentira e o relógio marcava 18h53min.

Raul tentou ligar novamente para o celular de sua mulher e de seus filhos, mas era impossível, a ligação não completava, depois de várias tentativas ele deixou um recado no celular de sua esposa:

- Fabi, por favor me liga assim que ouvir essa mensagem, amo vocês.

Ao desligar pensou que essa mensagem talvez nunca fosse ser ouvida e o choro veio inevitável enquanto carros passavam cada vez mais rápidos ao seu lado.

Olhou para o céu e para o sol que era um pequeno semicírculo vermelho no horizonte, ele não nasceria de novo.

A epopéia épica e sagrada do Sol acabaria para a raça humana naquela noite, o sol não ressurgiria vencendo o manto negro da noite, a ressurreição sagrada do astro maior terminara ali para aqueles que nele viram a vida nascer e morrer de seu calor interminável por tantos séculos.

Ele ressurgiria amanhã para um mundo desabitado, nenhuma reverência ou memória de sua grandeza seria feita. O maior castigo do extermínio seria o fim da adoração.

Divagou...

Por um breve momento seus músculos se retesaram e ele fez menção de levantar-se e entrar no carro para correr em direção a sua família, talvez morrendo mais perto deles encontrar suas almas não fosse tão difícil assim após tantas outras acompanharem o mesmo destino, mas ele sabia que essa percepção material de espaço e tempo não teria a menor importância para o lugar onde acreditava estar prestes a ingressar, o que o fez sentar novamente.

Raul nunca havia pensado na morte, nem quando seu pai morreu, o mais próximo desses pensamentos havia sido a reflexão sobre a injustiça de uma morte prematura quando um amigo muito próximo dele perdera a vida aos trinta anos, mas para ele a morte era natural e nada espantosa.

A morte, porém, passou a ocupar seus pensamentos, pensava em seus filhos tão jovens e em sua mulher, pensava no destino de todos que já havia sido escrito em algum momento e cuja linha final era intransponível, pensava em muitas pessoas e lugares, pensava em si.

A hora era 19h00.

É isso, pensou ele, faltam apenas 35 minutos para eu deixar de existir e eu estou impotente a ponto de não poder me despedir daqueles que amo, isso não é uma morte digna, justa, ou seja lá o que possa se esperar da morte.

Olhou para o céu já começando a ficar estrelado, sabia que àquela hora milhares de outras pessoas já haviam morrido em outras partes do planeta, esperou sua vez, paciente e impávido, em nenhum momento questionou os motivos do evento, em nenhum momento pensou em Deus, em nenhum momento acreditou ou deixou de acreditar em nada, o rádio já estava mudo e o sinal do celular deixou de existir.

A hora era 19h31min.

Raul levantou-se. Caminhou lentamente até o carro, reclinou o banco, colocou uma música do Led Zeppelin chamada Over The Hills And Far Away, a letra dizia algo como “Calmo é o homem que sabe o que está perdendo, muitos, muitos homens não conseguem ver a estrada aberta...”

A música acabou quando a hora era 19h35min.